O morro dobra-se volumoso, como se fosse uma explosão de barro contida, até a beira da estrada. Para abri-la, certamente foi preciso desbastar um pouco aquela massa de terra, que acaba de repente numa linha perpendicular, em contraste brutal com a montanha esparramada por toda a paisagem. A estrada deve ter nascido de modo espontâneo, os antigos aproveitando a estreita garganta entre os dois morros. A montanha é de verdade formada pelos dois morros que ladeiam a rua, deixando entre um sopé e outro a pequena tira de pó para os carros e um riacho lento, mais na frente transformado em lagoa. O passar do tempo ajeitou as coisas para a trilha, favorecida pela condição física e sua pele se foi alargando em estrada que hoje é rua a escoar o tráfego da parte norte da cidade.
Bem ali, no ponto onde o morro vai arredondar-se, antes de despencar em parede reta para a rua, foi escavado o espaço mais ou menos de um campo de futebol de salão, o terreno para a casa de tia Alvina.
Um caminho estreito, ladeado por pencas de folhagens, leva até a varanda da pequena casa de madeira, pintada num verde pálido, sujo pelas nódoas do pó que sobe da rua sem cessar. O pó misturou-se à tinta, criou estrias confusas e a ação do tempo é mais visível que qualquer capricho da tia. Eu gostava de sentar na varanda, entulhada de plantas que tia Alvina jamais se preocupou de combinar uma com a outra. O banco era um antigo balanço feito de ripas e fixo em duas pequenas pilastras de cimento. Eu sentava, via os eucaliptos nunca fixos, como se estivessem presos em cordas grossas e invisíveis que os puxassem para um lado, depois para o outro, cuidadosamente, folhas e galhos rangendo baixo, som de apertar os dentes. Eles cresceram do outro lado e pareciam pregados ao morro da frente. Tia Alvina olhava-os com certa apreensão. Eram altos demais e podiam puxar raio, ela dizia. Eu olhava aquelas formas esguias, claras, de certa sonolência, lentas no arredondado dos movimentos quase sempre cadenciados, deslizava os olhos pelos troncos manchados de um cinza azulado, feridas escorrendo na pele às vezes encaroçada, eu lembrava como a parte descascada aderia sem relevo aos dedos, como era cetim de madeira, e ficava intrigado a pensar como a magreza daquelas árvores seria um dia transformada em sabonete. Entre elas, ia indo um riacho pachorrento, com suas águas pretas na espessura da lama. De longe era um espelho com muito brilho. De perto, uma tristeza, porque nossas pernas se enfiavam até os joelhos naquele leito mole, trazendo as folhas já podres para cima e o mau cheiro. A água cinza, parecendo coalhada por grossa fumaça, não nos permitia tomar banho. Pela encosta do morro, usando a confusão das trilhas, os bois do patrão rico pastavam obsessivamente presos à grama.
Ao entrar na casa, eu sentia o cheiro da poeira, o cheiro dos gatos e dos canários. Muitos móveis eram cobertos com toalhas de crochê. O pó ficava entranhado nelas, envelhecia-as e os cuidados da tia eram inúteis para deixar a casa com ar de arrumada. Minha mãe sempre falava contra a tia, afirmando que ela era desmazelada, ordinária e eu não achava isso. Via era a tristeza tirando as forças da tia, emperrando seus braços, impedindo que a ordem saísse como ela desejava. Das asas dos canários parecia saltar ainda mais pó, que os gatos aparavam em seus pelos e depois espalhavam com preguiça por baixo das poltronas e das mesas. Sobrava pouco espaço pra gente se movimentar. Não era possível andar sem esbarrar aqui e ali. As coisas sempre tinham quinas demais, estavam sempre nos lugares errados, atrapalhavam a caminhada e, correr, nem pensar. Nem de esconder era possível brincar. Esconder-se onde? Atrás de cada móvel já estava a parede e tudo era estreito demais, visível demais, na cara demais. Por isso, minha mãe acabava sempre por dizer que a casa da tia era um armazém de amontoados.
Da cozinha, chegava-se direto, apenas um degrau, ao rancho, espécie de alpendre. Comprido e estreito, o seu telhado era mais alto próximo da porta de entrada e, na saída, mal dava para nós, meninos, passarmos. O chão de barro batido. Vermelho. Marrom. Liso, com o andar de tantos pés. Estava cheio de bicicletas velhas, enferrujadas, desmontadas. Um pouco da história desse veículo morava ali. Rodas imensas e grossas, largas. Rodas mais estreitas e esguias, com aros finos, melhor desenhados. Tudo na mais estonteante desordem deixava o sol varar muito chapado. O sol não conseguia entrar no rancho sem ficar alaranjado, sempre com um aspecto de fim de tarde. A ferrugem também tinha seu cheiro, como o de pepino muito tempo numa lata. Eu olhava os selins, furados pelas molas, os selins com nódoas de suor de tanto ir e vir da fábrica. Alguns para-lamas mal raspados ainda deixavam ver esbeltas mulheres nuas com bocas muito vermelhas. Pareciam cantar no banheiro, onde foram surpreendidas. Eu não entendia porque estavam nuas e com sapatos, sapatos altíssimos, nos quais devia ser muito difícil manter o equilíbrio. Entre um caibro caído e outro, a folhinha do Sagrado Coração estava rasgada, enfeiada, retorcendo o rosto de Cristo que parecia ali extremamente furioso. Faltava um pedaço do seu nariz. Asas de barata pendiam das teias. E o pó, muito pó.
Tia Alvina foi uma mulher magra. Rosto comprido, as maçãs esticavam-se encovadas para baixo, revelando os ossos. Os cabelos lisos acompanhavam as faces e os olhos não tinham uma localização precisa. Ela olhava como bicho acuado. Eu tinha a impressão de que, de uma hora para outra, as duas pupilas iriam cair, rolar pelo rosto, espatifando-se no chão. Nada parecia segurá-las naquela região desolada, sem profundidade, sem firmeza. Os peitos da tia eram sugados dentro de um vestido largo e não lhe davam nenhum realce. Com aqueles peitos sumidos, a tia ficava com mais aspecto de insegurança, algo enviesado passava por ela. Ela olhava com ânsia, melhor: a luz dos seus olhos era curta, insuficiente para chegar até onde estava a pessoa com quem ela conversava. Era assim que, quando falava comigo, eu tinha a sensação de ver seu olhar cair um metro antes de mim, ela parecia não me distinguir ou focalizar, orientando-se pelos meus sons. Eu morria da pena da tia. Baixava a voz para conversar com ela e isso devia dificultar sua percepção. Aquele rosto desfigurado, sem cor, sem movimento, espetava em mim uma culpa tão lodosa como o riacho, para nós, simples valo da fábrica. E as palavras da tia eram, na verdade, pequenos e estratégicos tapumes com os quais ela estancava soluços, represava o choro que um dia teria de explodir e inundar toda a casa. Eu detestava olhar para ela e relembrar as palavras duras de mamãe. Olhando para ela, na verdade, eu odiava minha mãe, sempre maquiada, sempre tinindo de nova, orgulhosa de ser a única da família com um carro e morando no centro. A beleza de minha mãe na casa da tia era tão gratuita quanto uma escola de samba num hospital. O ar ressabiado de minha tia dizia-me, mesmo sem eu ter condições de entender, que alguma coisa fora-lhe roubada e ela sofria por isso.
A xícara em que ela me oferecia café, o pano de prato em que depositava o pedaço de bolo, tudo me fazia relembrar as vagas conversas ouvidas uma ou outra vez: o tio batia nela por ciúmes do filho mais velho. Não suportava chegar da fábrica e encontrar a mulher conversando com o filho, o Darci, já um mocinho. Com cheiro de cachaça e de óleo dos teares, o tio esbravejava, enchia sua barba de saliva e começava a dizer desaforos para a esposa. Darci corria para o sótão. Qualquer defesa que ele esboçasse, dizer, por exemplo, que não via mal nenhum em conversar com a própria mãe, tornaria tudo pior. Muitas vezes eu ouvira minha mãe e meu pai conversar sobre isso, outras tias comentavam o absurdo de um pai ter ciúme da mulher com o próprio filho. Eu via em tudo um horror que não conseguia localizar direito em nenhum ponto daquelas pessoas. Elas eram manchas contaminadas, limitavam-se por fios muito frágeis e um certo veneno varava por elas, transformando suas vidas numa dança macabra. Eram bocas de monstros na escuridão e se autodevoravam. A língua de cada parente morria murcha no cimento e, se eu a esmagasse, corria o risco de trazê-la grudada na sola do sapato. Do meu jeito, eu procurava sofrer um pouco por aquela mulher. Mesmo sem gostar de bolo, comia tudo. Mesmo com repugnância daquela caneca trincada e amarelada pelo uso, eu bebia o café ou capilé – meus modos de acompanhar tia Alvina em seu calvário. Se eu dormisse num fim de semana em sua casa, ela insistia:
– Não pode dormir com fome. Quem dorme sem comer e por acaso morre, faz o armário ficar sempre aberto.
Minha morte não me espantava. Ficava encolhido na cama, tentando interpretar os ruídos da casa e descobrir como a morte chegaria para levar a tia. Nunca ouvi meu tio brigar, gritar com ela. Só podia dormir lá nos finais de semana. O tio nem aparecia em casa, ocupado de bar em bar. Assim, Darci, um rapaz que não gostava muito de moças, podia amorosamente, sem sobressalto, cuidar de sua mãe.
Eu não simpatizava com Darci. Ele era um moleirão. Tinha um traseiro arrebitado demais e comprimido em calças muito justas que também apertavam o sexo, deixando no lado esquerdo um volume ovalado que me intrigava. Para falar, pousava o cotovelo esquerdo sobre a mão direita voltada para baixo e inclinava o indicador em arco para o chão, ficando o polegar levemente fixo no queixo. Revirava os olhos e passava longas horas lendo revistas com artistas do cinema e do rádio. Corria para a tia:
– Mãe, não é divino?!
O Darci me parecia uma desengonçada trouxa de pó que mais confirmava o cheiro de mofo e madeira úmida a boiar na casa, saindo dos retratos, pousando nos móveis, nos vasos de planta, como um tecido misterioso a registrar a vida tão azarada de minha tia.
Sentado na cadeira, eu fixava os olhos nos braços da tia. Várias manchas roxas, mal disfarçadas pelos respingos da massa de pão. Acreditei sempre que aquelas eram sinais arredondados de feridas curadas. Para mim, tia Alvina devia ter sangue ruim ou ser muito picada por mosquitos que, pousando em cobras, maltratavam depois dos braços ressequidos dela.
O quarto onde eu dormia ficava no sótão, entre o de Alfonsinho e o de Darci. Ao subir a escada, cada tábua rangia com som abafado ou estridente, todos longos a me dar a sensação de estar enterrando os pés na barriga da madeira que protestava de dor. O cheiro de mofado e pó era mais concentrado ali em cima. Talvez voasse dos travesseiros e das cobertas de pena. Fronhas e lençóis tinham indefectíveis manchas idênticas às de chá na toalha e sobre elas havia uma crosta ressequida, leve penugem de pano não lavado. Essas manchas sussurravam sobre doenças ou sobre o vício secreto de Alfonsinho. Diante de sua porta, podia ouvir seus suspiros, seus gemidos. Ele nunca descia para comer ou brincar. Segundo a tia, ele era um santo. No ano que vem, vai entrar no seminário, é um devoto de Nossa Senhora. Minha mãe falava com palavras repartidas entre os dentes, disfarçadas em lá-rá-lás com o pai, para eu não compreender. Sabia apenas da parede do quarto, próxima à cama, com nódoas, a prova para quem quer ver – alertava a mãe. Ficava um segundo prolongado diante da porta e escutava o primo e tal ato me causava arrepios nos braços, nas pernas, nas têmporas. Fixava o crucifixo negro sobre a cama que me era destinada e procurava perceber o caminho entre aquele vício e o corpo de metal niquelado, ridiculamente distendido numa cruz. O arroxeado dos braços da tia a palpitar na massa de pão e, no café, eu comeria pão untado de sangue e do amarelo daqueles lençóis a envolver a solidão de Alfonsinho dedicado a Deus, livre do mundo, murmurando palavras compridas naquele quarto tão quente.
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O morro, depois do aplainado do terreno, crescia alto por trás da casa. Gostava de correr pelo capim alto, como no cinema, mas minhas pernas eram picadas, arranhadas, feridas pelas hastes cortantes, pelas folhas duras e finas nas bordas. Não podia ser poeta, voando naquele espaço. Das plantas ressequidas vinha um outro cheiro de coisa velha, mais adunco, como se estivessem cobertas de estilhaços de vidro a machucar narinas, pulmões. O manto sufocante do capim cobria o morro de ponta a ponta, e as touceiras tinham raízes enfezadas, avermelhadas, com uma quantidade estúpida de formigas. Se uma entrava pela meia, a perna ficava rubra e ardia. As unhas deixavam na pele uns traços esbranquiçados, meio semelhantes às que havia nos troncos dos eucaliptos.
De cima do morro, eu via o casario ao longe. O vento fresco me deixava navegar por uma sensação de perda. Cada telhado com sua chaminé, cada grito ao longe criava um buraco no vazio da tarde, adensando o molho de lonjura e saudade. Faltava alguma coisa em mim. Eu perdia alguma coisa pousado naquelas árvores e não sabia seu nome ou seu movimento. Uma espécie de suspensão, de asa tentando voo em lugar errado varava minha mente, e meus olhos encontravam no ar uma expectativa sem definição. Havia farrapos de história até onde alcançavam meus olhos. Alguns desfaziam-se assim que eu os contemplasse. Da casa da tia Alvina subia pela chaminé uma fumaça azulada e sob as telhas eu adivinhava a tia andando de cá para lá, o avental mais longo que o vestido, as panelas empilhadas na pia, os canários assobiando entre as varetas das gaiolas. Ouvia no vento as sílabas do tio traduzidas por minha mãe, os escândalos que ele fazia por causa de Darci. A lembrança daqueles olhos da tia que por qualquer movimento poderiam cair, deixando dois ocos horríveis em seu lugar, ampliava na paisagem a cor sem traço, a sensação de um vazio pessoal entre cada árvore. A tarde de repente parada ficava envolvida por crianças gritando distante dali, os carros passando, certas buzinadas de desespero, algum ruído de bicho, o chiar do vento a levantar vozes sem corpo, tudo dava as mãos para me aprisionar numa angústia fria. Eu me sinto sobre um piso de cristal. Um passo mais rígido e tudo estará estilhaçado e eu cairei, arrebentando as gaiolas, estragando as plantas, jogando os restos de bicicletas na rua para atrapalhar o trânsito e causar muitas mortes, minha mãe em cima do barranco, vestida de barro, falando em um código de lá-rá-lá que minha tia entende e põe-se a correr, com o avental grudado na cara, para ninguém ver os dois buracos profundos, já que os olhos tinham sido picados pelos canários, espiões do tio, delatores do amor de Darci por tia Alvina. Tudo se estraçalha, se esvazia o lugar das coisas. Tudo desguarnece o trivial de qualquer expressão. Eu fico militarmente parado, sondando os sentidos. Aspiro o silêncio com certa animalidade angelical e deixo-o escorrer dentro de mim. Tentava inflar-me com ele, ficar maior, voar até o alto do alto, para de lá ver a paisagem e então compreender. Minhas pernas chamuscavam pelas mordisquelas do capim e das formigas. Os olhos são filtros dos relevos do morro e dos bois, do barro, do brilho preguiçoso daquele riacho sem serventia. E eu não ordeno nada, sei apenas da necessidade de ficar imóvel, estancando o fluxo. O fluxo brotava da Terra, das fendas das telhas, das manchas dos braços da tia e dos lençóis de Alfonsinho, dos gatos que hipnotizam os canários, das folhagens abundantes que coroavam tudo. E tecia-se um mosaico estrangeiro, anulando meu esforço para entender os rostos e as falas daquela história. Sondava o enigma e o enigma fugia de mim com a brandura do balançar das árvores nas quais alguns insetos trilavam. Sob o chão dava para ouvir uma cachoeira gorgulhando, a levar um rio que jamais encontraria o mar. O céu a passar em sombras, essas a envolver as árvores. A casa cercada pelas árvores e pelas sombras resiste numa luz dura e ali eu repasso meus olhos, o coração em curvas embriagadas.
Um dia, estava descendo do morro e alguma coisa chamou minha atenção para a janela do quarto de Alfonsinho. Parei atrás de uma moita. Lá estava o primo: completamente nu a absorver o sol e o ar. Seu corpo era uma ventosa aberta. Distendido no parapeito, ele tinha os olhos fechados e acariciava o sexo. Vi a mancha negra do púbis, tão incompreensível para mim, porque Alfonsinho era de um loiro extremo e a pele tão branca como a da tia. Ele segurava com força o pênis, movimentava-o, e dos galhos foi soprando uma voz a falar em vício secreto, em manchas na parede. Fiquei magnetizado pela visão. O corpo nu recebia toda a luz da tarde, parecendo sobressair num quadro de propósito colocado no meu caminho. O primo tinha um jeito meio louco, enfurecido. Será que ele bebe como o tio? Meu pinto de repente me deu a sensação de estar sendo mordido pelas formigas. Quanto mais eu olhava, mais suava. Queria ver e ver. Um gosto de ampla abertura se foi desenhando em meu interior, um matiz de festa correu pelo meu sangue. Não consigo dar nem um passo, eu preciso VER. Estou tomado pelo quadro do qual a janela era a moldura. Estou fascinado por aquela carne exposta e livre. O sexo do meu primo está ensolarado, sua mão sobe e desce, torna a subir e apertar com força o talo que parece sangrar. Mais formigas riscam minha pele. Nunca me senti tão sozinho, tão ausente de tudo. Uma punhalada de sofrimento gozoso atravessa meu estômago, congela meus olhos. Estou absorto na visão, fascinado pelo corpo exposto e livre. Não sei se entendo, mas olho, olho e vejo.
(1991)