Quem é você, que de dentro da timidez, canta rascante – faca lâmina guilhotina da madrugada ímpia farpa de fogo na quina do olho? Quem é você, que faz um filho e ter um filho vale a canção de aço entre metralhadoras de edifícios sem ninguém? Ali no beco nascia uma flor de vidro corrugado que você revestiu com o toque agressivo suado metabolizante andróide da voz que não perdoa meio tom. Quem é você, que é mulher e se afoga em mulheres, esculpindo gemidos em toadas de luar de brasa? Você alarga a noção de gênero e desdobra o feminino até as raias que as convenções não atingem. Quem é você, que resolveu morrer nos festejos de fim-de-ano, fim de caminho, sem anúncio prévio, sem pauta de última música e se contorce em overdose de harmonias tresnoitadas para confundir os que tinham já prontas as manchetes que só importam aos que pastam a grama seca do todo-dia? Você que traz nuvem e pedra, depois faz o peito gemer e o peito é ninho sem ave de arribação, ou canto linear, ou pauta de fácil leitura? Mas, cada música não indicava à sua maneira a direção o sentido a profundidade o outro lado do lado de cá? E de overdose não foi sua vida em cada entrega no palco, onde você se transfigura não em deusa da rastejante adoração, mas em humana figura de relevo só para mostrar que nossas platitudes são rasas demais? Menina do sem-jeito tirada da jaula para ser jogada numa maior e mais fechada. Que história é essa de droga e álcool e químicas redondas ou ovaladas? Lhe espetavam a cada dia uma agenda que exauria sua doce identidade multipartida no périplo contraditório de uma casa a três. Que falem as manchetes, que urrem os laudos, que esbraveje o pai sem norte. Nenhum chegará nem perto da sombra a lhe flechar em cifras e murmurar na segurança movente de um tom cercando feito casca uma palavra. Ninguém tocará seu secreto centro onde você cultivava o que sabia ver. Cada mariposa embriagada ao seu redor não conhece as barras de acrobacias em que você se virava pelo avesso para não se mostrar mesmo quando as câmeras tinham potência de companheira. E assim vão acumular histórias e elas nem de raspão refletem os abismos e vales e dunas em que dançava você sob a lanterna dos afogados. Quem é você, que ousou pular a raia e riscou no quadro um esquema que poucos mastigam e se encheu de lua e vênus e sol pelas picadas de mato? Depois, subiu ao último cume como loba faminta para então descer ao acalanto de uma raiz que a ninguém era dado conhecer, nem tua companheira, nem teu filho, nem os que armazenavam cifras ao teu redor teriam olhos acesos para este escuro devagar deslizando sob cada verso martelado em nossos ouvidos.O centro cósmico de suas nervuras estava disfarçado atrás de um fruto amplo e era ácido como é ácida a manhã, quando precisamos acordar e deixar a praia e encarar a serra e nos arrebentar na cidade multiplicada em vazios de horários rotos. As ondas, o sal morno, o adunco do ar que vem das ilhas e dos sombreiros, o senso de dança dos barcos, tudo vai murchando e temos de ir, ainda vestidos como se fôssemos ficar. Assim, você, na dilatação após cada espetáculo. E quem é você que se afogou livre de sereias ou marinheiros ou sinalizadores? Lembre-se do que Kafka deixou inscrito em algum lugar: agora as sereias têm uma arma ainda mais assustadora que o canto – o silêncio. Temos seu silêncio e nele resvalam as músicas insistentes. Elas devolvem o silêncio ao interior dos ovos e dos úteros e dos olhos empapuçados de quem só vê os outdoors. Você, que ressuscitou Cazuza por alguns instantes dentro de nossa eternidade fingida de tempo que passa, e foi seguindo depois a cinza de um retrato feito a facão, como é facão sua voz de ave atravessadora de desertos e cannyons que alguns percebem como pontes e só você encarava como a falta elevada ao vazio na carência do nada. Todos nós, quando vamos de um precipício a outro, bamboleando sobre a corda não bem retesada, levamos em mãos aquela barra para o equilíbrio figurar como possibilidade. Você ia de um fosso a outro sem barra nenhuma, de peito aberto para os ventos que vinham carregados de sal e asas quebradas e faíscas de luzes e restos de noites mal dormidas. Quem é você, que reinventa o silêncio em nota raivosa e deixa ao pé da página o espaço em branco para alguma anotação? Você não imagina o que o terno mafioso dos babacas vai dizer em suas revistas moldadas para tudo ser como sempre foi. Não quiseram ver o que você vinha mudando canção após canção, suor dentro de suor, voz enrolando-se em microfones de tecnologia avançada, penetrando amplificadores que deixavam suas entranhas no palco e na bolacha cibernética de um cedê. Você nem pode contar quantos estarão de plantão para sujeitar sua história em capítulos que nunca lhe foram meio de ser e fazer o que você era e fazia na situação de mulher artista. Quem é você, dado que o menestrel, a princesa, o dragão e a fada habitavam a mesma carne? Da mesma forma que Renato Russo, agora também há um menino no meio do mundo e meio mundo na cara do menino. A voz que sobreviveu e ouvimos em carros que não vão a lugar nenhum. A voz camuflada a trilhar nossas telas com uma gota de vinagre no depois do champagne podre deste ano torto, forma enferrujada que contamina o bolo, as frutas secas, as folhas do calendário luzindo ali e ali para ser cumprido. A voz frisante. Um talho no abismo. Tatuagem no vidro de névoa. A estrela de latão saltitando no fundo do copo porque, no fim, todos engolimos a sopa de restos que a morte nos permite sorver com garras afiadas e enterradas no peito do corvo. Somos erguidos a um metro do chão e vamos cantando, hirtos, na forma de pensar que isso é voo. O céu lá fora está sendo espicaçado de fogos – é final de ano, gritam os embriagados com a única alegria de que são capazes nesta época pré-programada para isso mesmo: extravasar o nada de que são tecidas suas vidas enfeixadas por cápsulas de vidro fumê e escritórios de telas autofalantes. Assim, certamente, farão com sua vida, tentando encontrar em seus guardados o que você nunca escondeu. Você nos dá a cólera de alguém que era como nós e justo por isso se esfarinhou nas escamosas lantejoulas que mal cobrem a fragilidade de espuma com alguma forma do que somos. Quem é você, que ousou ousar e não nos tirou do barro empoeirado em que continuamos fuçando como se fôssemos animais raros. Não passamos de ralos paspalhões do próprio engano de olhar para o chão, quando o ponto-de-fuga é outro – aquele que oscila ali, onde você não está agora. Mas está: em tom cinza, sentada no ângulo de duas paredes, um tanto cabisbaixa, quase recuperando, à sua maneira, o pensador de Rodin e, do outro lado, no mesmo encontro das paredes, um par de tênis abandonado. Daí brotou sua malandragem, sua cadência do samba, sua música urbana, sua pétala que há de perturbar qualquer jardim neste planeta. Está assim: outra vez o cinza comanda a cena. Você de camisetão listrado, fumando, a vasta cabeleira com um toque easy-rider, a mão esquerda no bolso – talvez escondesse aí a granada – e pintava dessa conjugação o marginal, sonhei que viajava com você, bobagem, hear my train a coming, porque é isso mesmo, você trouxe para o lado de cá o Jimi Hendrix que tentaram nos sequestrar. Você pulsa como um pano menstruado. Seu rosto de ossatura bem demarcada ocupa a tela inteira, a cidade inteira. Não dá mais para escapar do que você veio dizer. Da história de esmagamento e adestramento e fardamento que a mulher brasileira foi obrigada a viver em nome do Estado, da Igreja, da Colônia, da Medicina, você saltou mil séculos para dizer outra forma do dizer da mulher. E disse tão bem que nem precisou de muito tempo para isso. As mulheres deste nosso país maltrapilho que estão enfrentando uma história cimentada no pomo-de-adão como se o masculino fosse medida única, logo estarão olhando para você e encontrando em sua performance o libertário escracho de quem não aceitou a canga. Você está aí, sim, só não vê os que medem a vida pelo acetinado desviante das telenovelas, do capricho em caras de veja. Seu grito voa pelo espaço até estatelar-se em nossos estômagos. E devagar vamos mastigando sua matéria e com ela nos nutrimos: não amarga marginal/defende teu pão/no pau/repousa tua fantasia/no mal/ama teu destino/como tal/tira desse sangue/todo sal. Taí o sal para de agora em diante nossa sopa deixar de ser essa papa de isopor.
Reviera – litoral paranaense – 31.12.01